23 janeiro 2017

23-jan-2017 Ter um sítio é bom

Ter um sítio é bom, muito bom. Pensei nisso no primeiro dia em que o percorri como dono, ao parar na sombra da imensa antiga mangueira, sentindo no rosto o vento da tarde e escutando o canto dos passarinhos, e voltei a pensar muitas vezes, ao longo desses onze anos em que o tenho.

Mas se quem nunca teve um sítio e deseja ter acha que é só isso o que você pensa, ou é um perfeito desinformado ou um perfeito idiota, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Há horas, meu caro, há horas em que o que você mais gostaria de ser no mundo é um mágico: um mágico, para, num simples passe, fazer desaparecer de imediato e para sempre seu amado sítio. 

Imagine, por exemplo, que um dia seu empregado, sem qualquer motivo, avise que vai sair. Bom, o mínimo que você pede é que ele fique mais uns dias, até você arranjar outro, pois um empregado não se arranja assim de repente. Ele concorda e promete ficar. Ótimo. Três dias depois, ao voltar ao sítio por um imprevisto, você encontra os porcos berrando de sede e fome, as cercas rebentadas e o gado no pomar, e a égua, depois de muita procura, lá no pasto do vizinho. O que você não encontra é o filho duma égua do empregado: esse caiu no mundo. Eu disse imagine: mas foi isso, foi exatamente isso o que aconteceu comigo logo no primeiro ano.

Houve depois coisas piores, bem piores, tanto na parte humana quanto na parte da natureza, embora, comparadas a algumas que vi ou ouvi de outras pessoas, eu possa dizer que não foram nada, que sou um sujeito de sorte. Na parte da natureza, o pior foi sempre, sem dúvida, as secas. É terrível. Só quem passou sabe. Você ver o gado emagrecendo, com aquele olhar que dói na gente. Os pastos rapados. O trato acabando. E dia após dia, noite após noite, olhar para o céu em busca de um sinalzinho de chuva, e nada. É terrível.

É nessa hora que seu empregado, se ele é dedicado, vira um verdadeiro herói. Mas, por maior que seja a dedicação, uma manhã ele chega e conta que uma bezerrinha, aquela pintada, foi no córrego beber água, escorregou e caiu, e aí, como ela estava fraquinha, não deu conta de se levantar e morreu afogada. Está bem: era só uma bezerrinha; muitos, na região, ja tinham perdido dezenas e até centenas de cabeças de gado (isso foi no ano passado, a pior seca que já vi). Mas, diabo, era a minha bezerrinha; e além disso, morrer desse jeito, afogada, no raso…

Uma manhã ele chega e… É quase sempre assim que vêm as más notícias: de manhã, tirando você da cama.

As boas? São raras, ou, talvez, raramente dadas  ̶  como se notícia boa não fosse notícia. Um pequeno catálogo das más: geou essa noite; a vaca perdeu a cria; a casinha da cisterna desabou; roubaram o latão de leite; o desintegrador não quer funcionar; o boi tá com bicheira; a porca tá com batedeira; a mola do carrinho quebrou; a bomba d’água enguiçou; roubaram de novo o latão; a bomba d’água enguiçou de novo.

Às vezes a notícia é uma só; às vezes uma sequência, contada com sinistros intervalos de silêncio.

Um dia a notícia foi o próprio empregado, trazido por um amigo: numa farra sábado à noite no sítio, um companheiro lhe enfiara a faca na barriga. E lá vai você, bocejando de sono, em plena manhã de domingo, mexer com hospital e polícia, e ainda ouvir as partes, dar conselhos, acalmar os ânimos, para que não saia mais alguma facada ou tiro e a morte de alguém; e depois, claro, ainda providenciar com urgência um substituto provisório para o empregado, porque senão, do jeito que as coisas andam, quando você chegar lá no sítio, não encontra nem o rastro dos animais. Ufa! Conseguida uma certa ordem no caos, você se esborracha numa cadeira e pensa: na primeira oportunidade que tiver, vou vender a merda desse sítio e nunca mais mexer com isso; mais nunca.

Mas o tempo passa, e os problemas acabam se resolvendo. Assim como as chuvas, que acabam voltando  ̶  e o capim de novo enverdece e cresce, e o gado engorda, e o pomar se cobre de mangas, cajus, goiabas, jabuticabas, e os passarinhos cantam numa endiabrada alegria, e o vento da tarde sopa em seu rosto, e você pensa: é bom ter um sítio, muito bom.


Crônica de Luís Vilela

Publicado originalmente em junho de 1987, na edição 21 da revista Globo Rural.